Uma grafia da fuga

Raduan Nassar não suspeita ao comprimir o pé contra o acelerador, as mãos presas à curva do volante e os olhos pendurados no percurso à frente. A cabeça fervilha e acredita seguir rumo ao sítio na Granja Vianna, mas avança mesmo em direção à loucura. Não seria ele a escapar à sina dos escritores até aqui, ele, o legionário apóstata, ele, o cínico, o silente – contudo não agora com os pés na estrada, “jovem escavando seu próprio interior em busca de diamantes”, o horizonte solar de uma obra em processo alvejando o rosto.

Desliga o som do carro quando atinge o alvo, gira de volta a chave, escapa para fora, mira o metal contra o metal da porta, alça à varanda da casa subindo a escada, o ano de 1968 ou 9, descalça os pés na almofada e medita a umidade do assoalho, por fim adentra o território da vingança. Pois não é esta sua morada ou a Granja Vianna, não a paisagem familiar dos cômodos de sua fabulação, embora sinta o cheiro da tinta com que percorria à época o risco da escrita, “suporte espontâneo da cólera”vibrando como ele vibrava, teso, entusiasmado.

Esta não é senão a narrativa que devolve Raduan Nassar àquele tempo, personagem de Joca Reiners Terron em “Cem Mil Frangos Fantasmas”. Pródigo renitente sob o olhar de um narrador que tem diante de si uma entrevista concedida ao repórter Elvis Cesar Bonassa, da Folha de S. Paulo, em 1995, décadas à frente desse dia. As respostas de Nassar dão a liga para a malha movediça dessa história, a memória arrebatada da escrita de Um copo de cólera, a rotina dos dias gastos no fio vivo da navalha exposta na conversa em que o autor cavalga novamente o verbo, e quem sabe a ignição dessa lembrança possa atear clareza sobre seu abandono da literatura?

Alguma promessa contida nesta dúvida catalisa a fábula, o narrador conduz a trama em saque aberto à entrevista, fermenta suas questões decisivas a partir dos fragmentos da fala. Eles catapultam ideias, raciocínios breves, no início dos quais está a constatação de que são duas as linhagens de desertores – aqueles que se calam por recusa a escrever algo abaixo de suas desmesuradas ambições e os meros mantenedores de carreiras, que abdicam dessas mesmas ambições para persistir inflando livros e livros despidos de sentido para si mesmos. Pela alta raridade da opção de Raduan Nassar é que em “Cem Mil Frangos Fantasmas” permite-se a ele que retorne a uma daquelas manhãs em 69 em que a vertigem, uma fúria contente lhe movia os músculos na trêfega textual. E assim voltamos a esta espécie de nascente, a estrada que lhe conduzia à criação, ao sítio na Granja Vianna, solitária-santuário onde secretaria a baba rara de sua obra-magma.

Animal que ainda não perdeu a fé ou mesmo a pôs à prova em batalhas contra a repetição, contra “as inevitáveis encomendas e solicitações típicas da profissionalização pelas quais escritores passam conforme seus livros saem e tão logo a política do prestígio se delineia”. Alcançamos Raduan Nassar antes que ele se veja diante da “substituição das intensas etapas de transformação alquímica de desejo em ficção pelos desertos burocráticos habitados pela obrigação (termo também traduzível por ‘trabalho’)”. O personagem de “Cem Mil Frangos Fantasmas”, ainda assim, é este duplo, escritor e trânsfuga. Um deles derramado na entrevista, uma das poucas ocasiões em que cedeu de seu silêncio, e o outro, secretado da imaginação interpretante do narrador – não encenando, mas investigando aquilo que o primeiro diz.

São diferentes tempos incidindo nessa história, cristal convulso de percursos. As cenas reerguidas pelo entrevistado oferecendo alguma pista sobre o que se passa na cabeça do jovem autor ali nos cômodos da casa, décadas atrás, a intervenção do narrador, que oscila entre a rotina do escritor, a entrevista e a própria escrita – pois este é um texto conduzido ao sabor das sensações, atravessado de expressões do tipo “agora isto, agora aquilo”, “tenho uma ideia, descubro que”, documentando a organização do pensamento.

Leitura através de leitura, pois é o mesmo que faz Raduan Nassar em suas respostas. Ensaia motivos, explica-se, e evocar a própria renúncia é já uma tentativa de perscrutação, desejosa de ver resvalar a luz dalgum entendimento. Assim retornam ele e o narrador àqueles dias da escrita de Um copo de cólera, no rumo de qualquer resposta ou para postergar o fim.

[trecho inicial de um dos capítulos de Joca Reiners Terron ou a imaginação crítica, dissertação que entrego no final deste mês, doa o que doer, salve-se o que der]

9 thoughts on “Uma grafia da fuga

  1. carolina

    ele publicou de trás pra frente o que escreveu. parece lógico q tenha voltado para a casa da infância, p/ a vida rural. em lavoura arcaica, andré volta p/ casa. um desejo terrível de reconciliação q a literatura não resolve(?), não resolveu(?). me parece lógico q ele tenha querido aquietar os fantasmas, parado de cutucar as feridas.

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  2. reuben da cunha rocha Post author

    já sacou a edição daquele “cadernos de literatura brasileira” sobre ele? tem uma entrevista excelente. além de esclarecer muita coisa (as coisas “não resolvidas”, como ele próprio coloca), cada resposta é uma pequena obra-prima.

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    1. carolina

      acho q alexandra tinha. eu nem li mesmo, só folhei por uma noite. é uma publicação q tem um conto da mulher sonâmbula? fiquei mt impressionada com esse.

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  3. zema ribeiro

    parece que o ims tá disponibilizando os cadernos pra download, mas quando procurei o de raduan ainda não tava disponível. carol, vale ler também o “sonho interrompido por guilhotina”, de joca reiners terron, que é o livro a que reuben se refere na dissertação. raduan nassar é um dos personagens da obra de jrt, que fica aí num limbo entre ficção e biografia(s). reuben, tua dissertação tá o bicho!: quebra tudo! que sirva de exemplo aos “engessados”. abração! ou melhor, no plural!

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  4. Pingback: Joca Reiners Terron ou a imaginação crítica: poéticas da leitura em Sonho interrompido por guilhotina | zema ribeiro

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